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Segunda-feira, que saco. Dia de aula, de obrigações, de usar uniforme, de ter hora para tomar banho, hora para comer, de ter que pentear o cabelo e ter medo da inspetora mandar eu voltar para casa porque naquele tempo e naquele espaço, menino não podia ter cabelo grande. E por que eu, menino, gostaria de ter cabelo grande? Não era uma opção, nem era uma pergunta que eu faria, dentre tantas que hoje faço sobre este assunto.

Segunda-feira, dia de cantar o hino com a mão no peito, de segurar a vontade de rir por estar em fila e observar a cara de estranha devoção de algumas crianças e de cumplicidade no deboche com outros demônios que eram como eu. De rir discretamente do canto desafinado da professora que estava ali cumprindo apenas uma obrigação puxando uma letra incompreendida por mim. Fúlgidos? Impávido? Florão? Lábaro? Flâmula?

Passado o suplício pseudo-nacionalista, tinha a chegada a sala. “Ai, vou sentar, finalmente!”. Taurino, releve. Não tinha o mesmo gosto chegar em sala as segundas de como era chegar em sala nas terças e nas quintas, dias de Ciências e Geografia. O auge da semana, um delírio! Até porque em especial nas quintas-feiras já pairava no ar o cheiro do final de semana na casa dos avós.

As segundas, quartas e sextas eram manchadas pelas aulas de português e matemática. Mano, que bosta. Que trololó mais sem nexo. Que ladainha sem fim. Uma mistura de dogmas com fórmulas que alimentavam em mim um tédio existencial imenso. Me perdia nas regras infinitas e nas exceções persistentes de Policarpo, mas amava a oportunidade de escrever e ser lido das aulas de Redação. Gostava muito também de ler e interpretar texto, uma delícia!  Quanto a História, eu até gostava, mas quando falavam de um tal de Portugal e outra de Espanha me subia um ranço, principalmente quando falavam de Missões, Jesuítas, e essa gente aí. Nasceu ali um menino decolonial, fato. 

Nessa memória toda, tem um companheiro de aventura, das boas e das não tão boas andanças: o estojo vermelho. Independentemente do que teria que estudar naquele dia, ele me acompanhava. Levava pra mim tudo o que eu precisava. Se minha mãe tinha uma bolsa onde cabia tudo, eu tinha um estojo que cabia tudo. Era mais importante para mim do que a minha mochila que, aliás, sempre foi pesada. 

O estojo vermelho de hoje carrega lápis, canetas, fone, pen drive e um case de pastilhas de menta. Mas já teve lápis, borracha, régua, corretivo e até compasso. Curioso fato: não tenho mais borracha nem corretivo. Errei? Dou um risco e sigo quando é no papel. Quando é no digital, o editor de texto apaga e quase não deixa rastro dos erros cometidos. Tempos modernos, fluidos e estranhos estes, não é mesmo?  

Ao longo dos anos o estojo vermelho sempre esteve comigo, dia após dia, em todas as aulas, em todos os cursos, em todos os momentos de ‘noooossa’, ‘uau!’, ‘ein?”, “QUE?’ e “ai ai”. Ele já foi preto e azul-marinho, mas ele sempre foi vermelho. Sempre teve nele intensidade, presença, desejo, processo. Ele sempre foi o meu portal, abri-lo era a primeira coisa que eu fazia pra me conectar com a aula e fechá-lo era o último ato antes do grito da liberdade da criança que me habita que queria brincar.

Nos dias em que era barrado pela inspetora por conta do cabelo grande, eu ficava frustrado por não ter aberto o estojo. Ele nem saia da mochila, desaparecia completamente do meu dia, era arrancado de mim. Ficava sem margem para viver o dia da semana.

Eu te amo demais, estojo vermelho. Obrigado por ser o meu portal. Por me suportar nestes caminhos tão tortos em busca de libertações através destas buscas por conhecimentos.

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